A História acontece como tragédia e se repete enquanto farsa. Karl Marx. 18 brumário

domingo, 13 de setembro de 2009

1968 - Brasil - Era dos Festivais - Ninguém ficava em cima do muro - Un regard ne pas sérieux - Blog LeMonde.fr

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01-05-2008
1968 - Brasil - Era dos Festivais - Ninguém ficava em cima do muro

No Brasil, em 1968, o hesitante presidente da República, marechal Arthur da Costa e Silva, era desafiado, entre outras forças, pelo movimento estudantil. Em síntese, os estudantes eram contra a progressiva restrição das liberdades pelo regime militar, a reforma universitária, o preço da comida nos restaurantes estudantis, o imperialismo norte-americano e a intervenção no Vietnã. As discussões começavam nas assembléias e desembocavam nas passeatas. Nas ruas, o arsenal dos estudantes era composto por paus, pedras, coquetéis Molotov, bolinhas de gude e rolhas; a repressão contava com agentes infiltrados do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), a cavalaria da Polícia Militar, cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e o arsenal de armas de fogo.

Neste clima polarizado, a Era dos Festivais dominava o campo musical. A Rede Globo, então emergente, promoveu o III Festival Internacional da Canção, cujas eliminatórias paulistas realizadas no TUCA (Teatro da Universidade Católica) eram transmitidas ao vivo pelo rádio e em branco e preto pela TV. No teatro, o público composto quase exclusivamente por universitários, refletiu as ruas e dividiu-se entre duas músicas: Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré e É proibido proibir, de Caetano Veloso.

A letra de Vandré ia direto na veia dos censores: “Há soldados armados amados ou não/ Quase todos perdidos de armas na mão/ Nos quartéis lhes ensinam/ Uma antiga lição/ De morrer pela pátria/ E viver sem razão/ Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”. Os versos de Vandré caíam sob medida numa música simples, pronta para consumo imediato nas passeatas, bares, centros acadêmicos e festas estudantis.

A letra de Caetano era fotográfica, inspirada em flashes das reportagens da revista Manchete sobre as revoltas de maio de 1968, em Paris. O título veio da foto de uma pichação “Il est interdit d’interdire” (É Proibido Proibir): “Me dê um beijo meu amor/ Eles estão nos esperando/ Os automóveis ardem em chamas/ Derrubar as prateleiras/ As estantes, as estátuas/ As vidraças, louças/ Livros, sim…/ E eu digo sim/ E eu digo não ao não/ E eu digo: É! / Proibido proibir”. A melodia era ingênua, a letra retratava as fotos de Paris, mas não se tornou bandeira estudantil.

No primeiro dia das eliminatórias, o anúncio de É Proibido Proibir despertou aplausos e gritos de “Caetano! Caetano!”, que apareceu vestido com uma camisa de plástico verde, um colete prateado, colares de fios elétricos e correntes metálicas com dentes de animais pendurados; a introdução musical, chocante para a época, misturava guitarras, estranhos sons eletrônicos e efeitos de percussão; o conjunto música e letra pareceu alienado aos partidários puristas da MPB.

Como elemento surpresa, Caetano incluiu no final da apresentação uma performance com o norte-americano John Dandurand. A figura espalhafatosamente vestida urrava e gritava frases incompreensíveis (Foto - John à frente, Caetano ao fundo, à direita). Já classificada na reapresentação as vaias multiplicaram-se, tomates maduros foram atirados ao palco e um coro gritava “Bicha! Bicha”, para o americano.

1968 Caetano

A repercussão na cidade foi fulminante. Os festivais eram assunto para todas as gerações, não era raro ocorrerem brigas nas famílias e entre amigos por causa das músicas. Portanto, justificava-se a fórmula do escândalo como sucesso, mas Caetano não imaginava o quanto esse caldo engrossaria.

Na segundo dia das eliminatórias, ao contrário de Caetano, Geraldo Vandré cantou sozinho, um banquinho e um violão (foto). A simplicidade resultou num sucesso, o refrão foi cantado pelo público presente e também ganhou as casas e as ruas.

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Na dia seguinte, 15 de setembro, as músicas classificadas na primeira e segunda rodadas fizeram a final paulista. Ao chegar no TUCA, Caetano declarou: “O que me interessa é desclassificar as coisas”.

Vandré cantou primeiro; durante a sua apresentação foi erguido um cartaz que, de um lado, continha um violão e uma caveira de boi e, do outro, a frase “Folclore é reação”. Divididos no auditório, as torcidas de Vandré e Caetano se pegaram como hoje fazem nos estádios, a polícia foi obrigada a intervir.

Caetano usou as mesmas roupas de plástico e incrementou sua performance ao movimentar os quadris e simbolizar um ato sexual. As vaias multiplicaram-se, uma parte da platéia deu as costas para o palco; Os Mutantes, que acompanhavam Caetano, deram as costas para a platéia, gritos e palavrões tomaram conta do TUCA. Perturbado, Caetano parou de cantar e iniciou um sermão: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado!… Quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e eu”. Enquanto continuava o discurso, cada vez menos audível, a platéia arremessava tomates, ovos, bananas e bolas de papel. O descontrole do público e dos intérpretes foi inédito.

Nos bastidores, Gil declarou: “Não tenho raiva deles, não, eles estão embotados pela burrice que uma coisa chamada Partido Comunista resolveu pôr nas cabeças deles”. Por sua vez, os estudantes questionaram: “Por que eles não são de esquerda como nós? Se fossem, assumiriam as dores do povo brasileiro, fariam um protesto contra a situação, não ficariam a badalar música importada”.

No calor da hora, o que nem Caetano, nem os estudantes foram capazes de concluir era que a desestruturação proposta pela Tropicália não atendia ao imediatismo da luta contra o endurecimento do regime militar. Enquanto Caetano e Gil não tinham ainda uma postura clara contra o militarismo, os universitários, intransigentes na defesa dos seus ideais, eram esteticamente conservadores, não queriam saber de performances, roupas e arranjos extravagantes, muito menos de posturas pouco viris nos palcos, nada condizentes com a aspereza dos confrontos nas ruas. Os puristas da MPB não permitiam instrumentos eletrônicos, só eram tolerados os acústicos; as músicas deveriam ter letras claras e diretas como as de Vandré e Chico Buarque de Hollanda. Durante o regime militar ninguém podia ficar em cima do muro."

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