A História acontece como tragédia e se repete enquanto farsa. Karl Marx. 18 brumário

domingo, 26 de julho de 2009

Sociobiologia e Psicanalise

Virou moda entre sociobiólogos, psicólogos evolucionistas, etc. a mania de conceber todo o comportamento humano como "comportamento geneticamente programado para a máxima propagação dos genes", de modo que, para enquadrar em seus esquemas comportamentos tais como o altruísmo inter-específico (a defesa do mico-leão dourado e de outras espécies à beira da extinção), a atividade artística e o suicídio, esses teóricos lançam mão de enunciados "ad hoc", isto é, usam o artifício que Popper atribuiu aos marxistas e aos psicanalistas: o recurso permanente a argumentos "ad hoc" irrefutáveis (os fatos os confirmam sempre). Ora, já que se utilizam desta "artimanha anticientífica", por que as comunidades céticas não incluem tais doutrinas no rol das pseudociências e das "falcatruas", ao lado da astrologia e da numerologia?
Sobre isso, escreveu Marcel Blanc (Os Herdeiros de Darwin; Ed. Scritta; pág. 202): "É certo que a sociobiologia humana apresenta defeitos evidentes. E a maior parte dos críticos ( Kitcher, Lewontin, entre outros) sublinharam a maneira `cavalheiresca' com que os sociobiólogos falam dos determinismos genéticos do comportamento humano. Eles não têm, na maioria das vezes, nenhuma prova direta de que este ou aquele comportamento examinado é determinado geneticamente. Apenas postulam-no por uma necessidade da teoria. Por exemplo, se a guerra intertribal permite a um grupo propagar seus genes de modo mais eficaz (após o extermínio do grupo rival), então deve haver genes da guerra da conquista.
Postula a sociobiologia aplicada à sociedade humana um férreo "determinismo genético" do comportamento humano, do mesmo modo que Freud defendeu a existência de um "determinismo psíquico". Mas semelhança entre essas duas "doutrinas" vai mais longe: os sociobiologistas afirmam que todo comportamento, tanto na formiga quanto no homem, é precedido por complicados cálculos que o indivíduo realiza "inconscientemente" para se certificar de que o comportamento em questão realmente contribui para a máxima propagação dos genes, sendo que alguns desses pensamentos "inconscientes" pressupõem um vasto, profundo e erudito conhecimento de genética que só Wilson e Dawkins possuem. Por exemplo: para que um indivíduo "X" arrisque sua vida para salvar a de um outro indivíduo "Y" da sua espécie, antes ele tem que calcular: a) o grau de parentesco entre X e Y; b) o número de descendentes possível que X ainda pode gerar; c) o número de descendentes possível que Y pode vir a ter; d) se a prole futura de Y, o indivíduo em perigo, é provavelmente maior que a de X (vamos supor, 3 para 1), X ainda terá que se certificar de que os 3 prováveis filhos de Y propagarão mais genes de X do que o único filho que X ainda pode gerar. Calculozinhos complicados, não? E todos eles realizados inconscientemente, numa velocidade que deixa na poeira o "deep blue", aquele supercomputador enxadrista que derrotou o Gary Kasparov. Brabo! Dentre todos os psicanalistas, o meu é o que tem a imaginação mais fértil. Mesmo assim, seu poder imaginativo é muito inferior ao desses psicólogos evolucionistas.
Sobre essas coincidências entre a psicanálise e a "nova ciência da psicologia evolucionista", Robert Wright, autor do livro "O Animal Moral", escreveu o seguinte: "A exemplo do neo-darwinismo, o pensamento freudiano descobre espertos propósitos inconscientes em nossos atos mais inocentes. E a exemplo do neo-darwinismo, ele vê uma essência animal no cerne do nosso inconsciente. Tampouco são apenas essas duas noções que os pensamentos freudiano e darwinista têm em comum. Apesar de todas as críticas que atraiu nas últimas décadas, o freudianismo continua a ser o paradigma comportamental mais influente – acadêmica, moral e espiritualmente – de nosso tempo. E é a essa posição que o novo paradigma darwinista aspira." (pág. 274)
Mas, de um outro ponto de vista, psicanálise e psicologia evolucionista também podem ser consideradas irmãs xifópagas: o ponto de vista da epistemologia popperiana. Com efeito, se os principais enunciados da psicanálise não são falseáveis, a maioria das crenças dos psicólogos evolucionistas também não o são, pois não há comportamento humano que não seja compatível com as idéias subjacentes à psicologia evolucionista. E, sendo assim, essas idéias, tal como as idéias psicanalíticas, não equivalem a uma teoria científica, segundo Popper. Mas ela (a psicologia evolucionista) pretende erigir-se a condição de novo paradigma, destronando de uma vez para sempre o freudismo. Se a asserção de Freud de que "as guerras fratricidas são as mais encarniçadas" for verdadeira...
Nesta guerra, porém, Freud tem uma vantagem sobre Wilson: Freud é(era) um darwinista. Significa que a psicanálise pode muito bem utilizar os argumentos da psicologia evolucionista (darwinista) em seu proveito. Tal como um judoca, Freud pode levar Wilson & Cia. à lona valendo-se da sua força somada à força do oponente.
A sociobiologia encerra algumas verdades. Não é uma ambigüidade. A sociobiologia aplicada à sociedade humana avançaria muito se considerasse a tese de que a maior vantagem seletiva do homem é a "adaptabilidade", ou seja, a capacidade de se adaptar aos mais diversos ambientes e a diferentes modos de vida, o que pressupõe um comportamento determinado em muito maior escala por informações extra-genéticas, adquiridas por meio da atividade prático-cognitiva do indivíduo e propagáveis mediante mecanismos tais como a linguagem, muito mais do que por informações diretamente armazenadas nos genes, transmitidas via intercurso sexual e sujeitas ao acaso das mutações.
As ações humanas, longe de serem comportamentos reflexos, "obedecem a um determinismo particular, o do mundo dos valores" (Philip Kitcher, "Vaulting Ambition"), de sorte que, se o mecanismo darwiniano da seleção natural ainda opera no âmbito da espécie humana, o que ele seleciona são "sistemas de valores" (nada a ver com "memes") e não tanto genes. A sociobiologia humana sairia lucrando, também, se fosse um pouco mais cética com relação à tese do "gene egoísta" (e, por extenção, a do "meme egocêntrico") de Richard Dawkins, ou seja, à idéia de que a seleção natural opera a triagem dos genes, e não dos indivíduos. Eu, particularmente, que vos falo de dentro deste poço profundo que é a minha condição de autoditata, ainda prefiro a tese mais ortodoxa segundo a qual os genes mutam, os indivíduos são selecionados e as espécies evoluem. Presumo que a validade dessa teoria (a do gene egoísta) esteja circunscrita a um período muito remoto, anterior mesmo ao surgimento das bactérias, quando somente existiam macromoléculas nuas de RNA replicando-se freneticamente nas lagunas quentes ou nas proximidades das nascentes hidrotérmicas submarinas.
A sociobiologia, para progredir, deve também levar em conta algumas idéias dos darwinistas "heréticos" Motoo Kimura e Stephen Gould, isto é, a idéia segundo a qual algumas características fenotípicas e comportamentos não são diretamente selecionados. Vale dizer: "1) Os organismos são sistemas integrados e uma mudança numa das suas partes pode levar a modificações não adaptativas de outras características (`correlação de crescimento', nas palavras de Darwin); 2) Um órgão construído para um papel específico sob a influência da seleção pode ser capaz, em conseqüência da sua estrutura, de desempenhar também muitas outras funções não selecionadas." (S. J. Gould; O Polegar do Panda; Gradiva; pág. 55.)
E, por fim, a sociobiologia humana bem que poderia incorporar em seus esquemas o fenômeno da neotenia. Por meio desse fenômeno biológico muito interessante, a guerra entre irmãos inimigos (psicanálise "versus" psicologia evolucionista) pode muito bem se transformar num fraterno diálogo. Extraí do Dicionário de Termos Psiquiátricos, de Isaac Mielnik (ed. Roca, pp. 192/192), a seguinte definição de neotenia:
"Neotenia. Princípio da. Considera as características físicas do adulto humano homólogas às do feto ou animal jovem. Acredita-se que o conceito de neotenia, embora aplicável a certas características físicas, possa explicar também elementos de conduta. Roheim, e mais recentemente Weyl, aplicaram este princípio à teoria psicodinâmica do comportamento, considerando alguns aspectos do dispositivo instintivo (id) que possam derivar de características do comportamento do animal jovem. Assim, a continuidade da motivação do processo reprodutivo humano, sem o caráter cíclico observado nos animais adultos, seria comparável ao impulso contínuo do comportamento filial de animais jovens, como conseqüência do princípio da neotenia. O adulto humano teria que aplicar um dispositivo especial para reprimir os padrões arcaicos do comportamento sexual. Seria a base biológica da repressão primária ou primal mediante a qual a criança supera o uso de atividades orais e anais como sistema de relacionamento com a pessoa que ama e as substitui por atividades genitais e espirituais sublimadas.

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